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Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August NemoЧитать онлайн книгу.

Romancistas Essenciais - Lima Barreto - August Nemo


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      — Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...

      — Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.

      — É justo.

      — O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...

      — Não. Espere um pouco...

      — Oh! major, não se incomode, Não é pra já.

      Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:

      — Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?

      — Muito bem.

      — Pretende dedicar-se à agricultura?

      — Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.

      — Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão cansadas e...

      — Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é cultivada há milhares de anos, entretanto...

      — Mas lá se trabalha.

      — Por que não se há de trabalhar aqui também?

      — Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...

      — Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.

      — O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados...

      Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.

      — Que questão é? indagou Quaresma.

      O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:

      — Então não sabe?

      — Não.

      — Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás - apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influência... Que pensa o senhor?

      — Eu... Nada!

      O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo, este malandro quer ficar bem com os dois, para depois arranjar-se sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele "estrangeiro", que vinha não se sabe donde!

      — O major é um filósofo, disse ele com malícia.

      — Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.

      Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão, mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a fisionomia e disse em ar de despedida:

      — Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?

      — Decerto.

      Os dois se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vê-lo montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o major ficou a pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer coisa de vital e importante. Não atinava porque uma rezinga entre dois figurões importantes vinha pôr desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles. Não estava ali a terra boa para cultivar e criar? Não exigia ela uma árdua luta diária? Por que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres, vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à terra e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...

      O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo.

      O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos põem em comunicação com o resto do mundo. Há uma mescla de medo e de alegria, Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se também más. A alternativa angustia...

      O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mistério, e traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.

      Quaresma esperou o trem. Ele chegou arfando e se estirando como um réptil pela estação afora à luz forte do sol poente. Não se demorou muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas, tristezas por outras estações além. O major pensou ainda um pouco como aquilo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se afastam tanto da linha imaginária da beleza que os nossos educadores de dois mil anos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava à estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que caminhava com pressa... Quem era? Aquele chapéu dobrado, como um morrião... Aquele fraque comprido... Passo miúdo... Um violão! Era ele!

      — Adelaide, está aí o Ricardo.

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