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O último comboio para a liberdade. Meg Waite ClaytonЧитать онлайн книгу.

O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton


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da mãe e o seu coelhinho jazia no chão.

      — Tens de levar o Walter para a estação de comboio — insistia a mãe. — A Lisl já deve ter os bilhetes. Também vou enviar o Stephan.

      — Estás a exagerar, tal como a Lisl — insistia o pai. — Quem é que a minha irmã acha que ia incomodá-la? Está casada com uma das famílias mais importantes de Viena. E, se me fosse embora, quem geriria a Chocolates Neuman? O presidente Miklas terá restaurado a ordem amanhã ao amanhecer e, além disso, não podes ficar aqui sozinha, Ruche…

      Lisl entrou pela porta principal, subiu as escadas a correr e passou à frente de Stephan para entrar na biblioteca quando a mãe dizia que Helga cuidaria dela e que poderia encontrar-se com eles quando se sentisse melhor.

      — Não sejas tola, Ruchele! — exclamou a tia Lisl, enquanto Stephan, ignorando o alvoroço que se filtrava através da porta que deixara entreaberta, tentava entrar atrás dela.

      — Stephan! Por amor de Deus! — exclamou a mãe, enquanto o pai exigia saber onde estivera.

      — O comboio das onze e um quarto para Praga já estava cheio às nove — disse a tia Lisl. — Estava tudo cheio, mesmo antes de chegar à estação. E, esta noite, não há mais nada. De todas as formas, assim que os passageiros comecem a embarcar, esses abusadores horríveis começarão a descer todos os judeus que tenham lugares.

      O relógio tocou apenas uma vez, indicando a meia hora ou a uma da madrugada. O rádio continuava a murmurar, reproduzindo parte de um comunicado emitido pelo chanceler Schuschnigg naquela mesma tarde, dizendo que o Reich alemão apresentara um ultimato, garantindo que, a não ser que se nomeasse um chanceler escolhido por eles, as tropas alemãs começariam a atravessar a fronteira. «Dado que, mesmo neste momento tão grave, não estamos dispostos a derramar sangue alemão, ordenámos ao nosso exército que, no caso de acontecer uma invasão, se retirem sem muita resistência, para aguardar as decisões das próximas horas», dizia o chanceler. «Neste momento, despeço-me do povo austríaco com umas palavras que pronuncio do fundo do meu coração: Que Deus proteja a Áustria!»

      O chanceler demitira-se e entregara o poder aos nazis? A Áustria nem sequer ia defender-se?

      As vozes procedentes do andar de baixo surpreenderam-nos. Stephan ajudou o pai a sentar a mãe na cadeira de rodas, sem soltar Walter, que continuava a dormir, e o pai levou-a para a porta da biblioteca. Estariam mais seguros nos andares superiores.

      Homens jovens já estavam a invadir o palácio com vozes entusiastas que ecoavam no vestíbulo.

      O pai recuou com a mãe outra vez para a biblioteca e trancou a porta.

      Lá em baixo, ouviam-se os móveis a cair, o barulho do vidro a partir-se, não só o de uma janela ou de um vaso, mas talvez todo o serviço de copos e a porcelana que Helga pusera na mesa no caso de desejarem jantar na sala de jantar. Depois, ouviram-se gargalhadas estrepitosas. Alguém começou a tocar o piano, surpreendentemente bem: Clair de Lune de Beethoven. Os nazis comentaram alguma coisa sobre uma caixa de cigarros, uma vela e as estátuas que enfeitavam a sala de baile. Alguns começaram a entoar: «Empurra. Empurra», ao que se seguiu um golpe forte que não podia ser outra coisa senão uma das estátuas enormes de mármore a cair contra o chão da sala de baile. Os invasores aclamavam sem parar e vários deles começaram a subir a escada principal para os andares superiores, para os quartos onde Stephan supôs que esperavam encontrar a família.

      Alguma coisa se partiu no andar de cima e seguiram-se mais gargalhadas. A pinça para notas do pai estaria na cómoda. As joias da mãe também estariam lá. Não estava claro se os invasores estavam a ficar com as coisas ou só desfrutavam de estar naquela casa tão opulenta cujo porteiro sempre lhes negara a entrada. Onde estava Rolf?

      A pobre Helga, no andar dos empregados, devia estar aterrorizada. Aqueles abusadores magoariam os empregados?

      A maçaneta da biblioteca agitou-se. Ninguém se mexeu. Voltou a agitar-se. O rádio continuava a emitir o seu murmúrio delator.

      O piano tocava na sala de música; o dó sustenido — a nota que Stephan pensava que se pareceria com o som da luz da lua sobre o lago Lucerna se fosse audível — agora, parecia um mau presságio.

      — Quem está aí? — perguntou alguém. — Fecharam-se aí? — Poderia ser a voz de Dieter, mas Stephan não conseguia acreditar.

      Um corpo chocou com força contra a porta, depois outra vez, seguido de gargalhadas, empurrões, outro golpe contra a porta e vozes diferentes que se alternavam e se desviavam para tentar derrubar a porta.

      — Essa estátua — disse alguém. — Podíamos usá-la para forçar a porta.

      O caos da conversa e os pés a arrastar-se pelo chão vieram acompanhados por mais gargalhadas. A estátua era de mármore. Como a que tinham deixado cair na sala de baile e pesava mais de duzentos quilos. Žofie já o calculara.

      Outro corpo bateu contra a porta da biblioteca.

      — E esta mesa? — sugeriu alguém.

      Stephan ouviu com atenção, como se, ao fazê-lo, conseguisse detê-los. A coleção de objetos de prata da mãe caiu ao chão do outro lado da porta. E o rádio continuava a murmurar e o piano continuava a tocar.

      Stephan aproximou-se da porta para usar o corpo como uma barreira. A mãe abanou a cabeça, tentando dissuadi-lo, mas ninguém se mexeu nem falou.

      O locutor do rádio anunciou um comunicado importante: O presidente Miklas cedera. O presidente da câmara Klausner anunciou «com profunda emoção neste momento de júbilo que a Áustria é livre, que a Áustria é nacional-socialista.»

      Um clamor ensurdecedor invadiu a rua.

      Alguém emitiu um assobio sonoro da porta da entrada.

      Do outro lado da porta, o rapaz que falava como Dieter gritou: «Por cima do corrimão!»

      Um golpe forte no vestíbulo de mármore foi recebido com vivas e uma correria de pés pela escada. A porta da entrada fechou-se de repente, deixando-os sozinhos com os sons amortecidos de fora e o murmúrio do rádio. Clair de Lune continuava a ouvir-se no piano. Ouviram-se as duas últimas notas compridas e profundas do primeiro movimento, seguidas de um momento de silêncio. Uns pés apressados atravessaram o vestíbulo. A porta abriu-se, mas não voltou a fechar-se. Ter-se-ia ido embora?

      Antes de o silêncio do interior não conseguir prolongar-se, pois a voz do rádio deu lugar a uma marcha militar alemã, Stephan abriu a porta da biblioteca e espreitou. Havia caos por todo o lado, mas o pianista não estava lá.

      Desceu as escadas devagar e tropeçou nos últimos degraus. Trancou a porta da entrada. Apoiou-se contra a porta com o coração acelerado, como se um visitante frenético batesse com força na aldraba de fora.

      O vestíbulo e a escada imperial estavam cheios de objetos partidos e amolgados: Móveis e serviço de copos, quadros e esculturas, tigelas às flores e açucareiros de prata, chocalhos de bebé, jarras de água, dedais, rolhas de garrafas e coisas que não tinham nenhum propósito, todas amolgadas. Dispersas entre toda aquela desordem estavam as fotografias pisadas e as cartas que, de todo o desastre que os invasores tinham deixado pelo caminho, seriam o que encheria os olhos da mãe de lágrimas. Só o piano parecia intacto. O pianista até se dera ao trabalho de voltar a fechar a tampa, algo de que ele próprio costumava esquecer-se com frequência. Ao aproximar-se, encontrou outra desordem de páginas espalhadas. Entre todas elas, pisada até quase ser ilegível, havia uma página em que se lia um título escrito à máquina: «O PARADOXO DO MENTIROSO.»

Segunda parte A ÉPOCA INTERMÉDIA MARÇO DE 1938

      DEPOIS DE SE RECUSAR A DANÇAR

      Truus espreitou para a escuridão do quarto da pequena pensão de Hamburgo no momento em que Klara van Lange, que acordara com as vozes ou que talvez tivesse passado a noite em branco, perguntava que barulho era aquele.


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