O último comboio para a liberdade. Meg Waite ClaytonЧитать онлайн книгу.
sentou-se no divã e aninhou-se junto da sua mãe.
— Vá lá, Stephan. Vá lá — disse o pai.
Stephan pegou na máquina de escrever pesada e passou à frente da cadeira de rodas da mãe antes de o pai mudar de opinião. Pôs a máquina no escritório do pai, junto da biblioteca, e começou a trabalhar novamente, mas, ao extrair a página do título, apercebeu-se de que não trouxera mais papel. Olhou pela janela durante um minuto, a mesma vista que via do seu quarto, no andar de cima, através da árvore. Voltou a pôr a página na máquina e escreveu do outro lado. Não queria arriscar-se a voltar a ficar fechado na biblioteca.
Quando chegou ao fim da página, voltou para cima e começou a escrever entre as linhas, ouvindo as vozes da biblioteca agora. Sim, os pais e a tia Lisl estavam a conversar com grande seriedade.
Sem fazer barulho, abriu a porta de vidro que tinha ao lado e fechou-a atrás dele quando saiu para a varanda. Subiu para o ramo da árvore. Em vez de subir pela árvore até ao telhado, como costumava fazer — de noite, para observar a cidade de Viena à luz da lua —, desceu e saltou até ao chão de um dos ramos inferiores, perto da barraca do guarda e das portas da entrada. Parou. Onde estava Rolf? Não havia ninguém a vigiar a porta? Mas isso não importava. Naquela noite, não teriam visitas.
Mesmo assim, parou para espreitar pela janela do pequeno quarto da casa de Rolf. Estava demasiado escuro para saber se havia alguém lá dentro. A rua também estava sinistramente tranquila e a sua própria sombra era projetada pelo brilho dourado dos candeeiros de ferro fundido. Era inquietante enquanto corria pelo quarteirão.
A TEORIA DO CAOS
Stephan observou, nervoso, enquanto Žofie-Helene abria a porta lateral do Burgtheater com a chave que tirara do bolso do casaco do avô.
— Não devíamos estar aqui — disse Dieter.
— O Stephan poderá ver as cenas da sua própria peça representadas num palco a sério — insistiu Žofie-Helene, enquanto os guiava pelo corredor para o teatro. — Tal como o seu herói, o Stefan Zweig.
— Vamos meter-nos numa confusão se nos apanharem — insistiu Dieter.
— Pensei que gostavas de confusões, Dieter — replicou Žofie-Helene.
Deixou o casaco e o cachecol num dos bancos da última fila do teatro e, depois, desapareceu para o vestíbulo sem dar explicações.
— Pensei que gostavas de confusões, Dieter — sussurrou Stephan ao amigo.
— Só das confusões com as raparigas.
— Não te meteste em nenhuma confusão com raparigas, Dieterrotzni.
— Ah, não? Se queres beijar uma rapariga, fá-lo de uma vez, Stephan. E tu é que és um pirralho.
Acendeu-se uma luz no palco e Stephan assustou-se. Baixou ainda mais o tom de voz e disse:
— Não podes beijar uma rapariga sem mais nem menos.
— Elas querem que seja assim. Querem um homem que tenha o controlo. Querem que as lisonjeies e as beijes.
Žofie-Helene apareceu no palco. Como chegara até lá?
— «A questão agora baseia-se na hemoglobina» — replicou, recitando uma frase da sua nova peça. — «Sem dúvida, entenderão a importância desta minha descoberta.»
Quando Stephan e Dieter ficaram no corredor, a olhar para ela, acrescentou:
— Vá lá, Deet. Não memorizaste as tuas frases?
Dieter hesitou, mas tirou o casaco, percorreu o corredor e subiu para o palco. Recitou:
— «É interessante, sem dúvida, mas…»
— «É interessante, quimicamente, sem dúvida», Deet — corrigiu Stephan. — Não consegues recordar uma simples frase? — O seu nervosismo estava a transmitir-se para Dieter, embora bem pudesse ter estado zangado com Žofie. Mas como poderia estar zangado com uma rapariga que desejava dar-lhe o presente de ver a sua peça representada no palco do Burgtheater?
— Significa o mesmo — respondeu Dieter.
— É uma homenagem ao Sherlock Holmes, Deet — indicou Žofie-Helene. — Não funciona como homenagem se não disseres as palavras com exatidão.
Stephan percorreu o corredor, no caso de dever ocupar um banco perto do palco. Não era isso que os encenadores faziam?
— O Sherlock Holmes é um homem — disse Dieter. — Continuo sem entender como uma rapariga detetive pode honrá-lo.
— É mais interessante com uma rapariga detetive porque é inesperado — explicou Žofie-Helene. — Além disso, li todas as histórias do Sherlock Holmes e tu não leste nenhuma.
Dieter esticou a mão e tocou-lhe na face.
— Isso é porque és muito mais inteligente do que o Stephan e do que eu e mais bonita, minha pequena mausebär — redarguiu, usando a alcunha do primeiro ato de Stephan.
Stephan supôs que Žofie-Helene se riria de Dieter, mas só corou e olhou para ele, antes de pousar o olhar nas tábuas do palco. Não deveria ter dado a Dieter o papel de Selig para que o interpretasse junto da Zelda de Žofie-Helene, mas Dieter era o único com a arrogância suficiente para o fazer bem. Stephan tentara misturar uma detetive do tipo de Sherlock Holmes, a Zelda mulher, com uma personagem um pouco como o médico de Amok, de Zweig, um rapaz obcecado com uma rapariga que não estava interessada nele. No entanto, ele não entendia exatamente Amok e, quando perguntara ao pai porque a mulher pensava que o médico poderia ajudá-la com o bebé que não desejava, o pai respondera, com brusquidão: «És um homem de caráter, Stephan. Nunca te verás na situação de ter um bebé que não devias ter.»
Dieter levantou o queixo a Žofie e beijou-a nos lábios. Ela recebeu o beijo com um certo torpor, mas, depois, foi como se se fundisse com ele.
Stephan virou-lhes as costas, fingindo que estava distraído a escolher um lugar onde pudesse sentar-se, enquanto murmurava:
— É uma peça de mistério, não uma história de amor, palerma.
Sentou-se e olhou para eles. Por sorte, já não estavam a beijar-se, embora Žofie tivesse as faces coradas.
— Žofe — disse —, começa com a frase sobre como o Dieter é tolo.
— Sobre como o Selig é parvo? — perguntou Žofie.
— Não foi o que disse? Se todos vão repetir o que digo, nunca conseguiremos chegar ao fim.
Estavam a ensaiar há duas cenas e os relógios de Viena tinham acabado de dar as sete quando Žofie ouviu alguma coisa. A buzina de um carro? Aplausos à frente do teatro? Era o que parecia: O barulho amortecido da multidão a aplaudir e os carros a buzinar. Olhou para Stephan do palco. Sim, ele também ouvira.
Os três agarraram nos seus casacos e correram para as portas da entrada do teatro, à medida que o alvoroço aumentava. Quando empurraram as portas para as abrir, o barulho tornou-se ensurdecedor. Viena estava cheia de soldados das SA com as suas armas, homens com braceletes de suásticas, jovens agarrados a camiões com suásticas pintadas que percorriam a Ringstrasse e que atravessavam a universidade e a câmara municipal e passavam junto deles, à frente do teatro. No entanto, não havia motins. Estavam todos alegres. Todos gritavam: «Ein Volk, ein Reich, ein Führer!» e «Heil Hitler, Sieg Heil!» e «Juden verrecken!» Morte aos judeus.
Žofie estudou a multidão em busca da mãe enquanto os três se retiravam novamente para as sombras da entrada do teatro. Essa devia ser a razão por que o avô tivera de ficar com Jojo e com ela naquela noite enquanto a mãe saía, mas de que se tratava? De onde saíra tudo aquilo? Os camiões pintados. As suásticas coladas aos candeeiros. Os braceletes. A multidão. Não podiam ter-se materializado do nada.